Não sei quando você lerá isso, mas posso contar quando começou: eu estava caminhado solitariamente pelo bosque quando a entidade veio até mim. Era além de um borrão. Era, por falta de um termo melhor, a ausência de significado. Onde se escondia, não haviam árvores; onde se aproximava, não havia grama; com um arcar, pulou em mim, e não havia nenhuma brisa de movimentação. Na verdade, não havia ar algum.
Enquanto me atingia, senti a sensação distinta de garras perfurando-me em algum lugar que não podia ser visto; algum lugar que nunca sentira antes. Minhas mãos, minhas pernas, meu torso pareciam bem e eu não sangrava, mas sabia que tinha me ferido de certa forma. Com medo, corri de volta para casa, podia perceber que agora eu era menos. Um vago cansaço pairava em mim, e as vezes era difícil manter o foco.
A solução nessa fase inicial era muito simples: uma grande xícara de café fazia com que eu me sentisse normal novamente.
Por um tempo, aquele sútil aperto em meu espírito se perdeu no fluxo intenso da cafeína em meu sistema. Na verdade, você pode dizer que minha vida começou naquela semana, pois foi quando conheci Mar. Ela e eu nos dávamos muito bem e, para ser honesto, tenho quase certeza que me apaixonei quando nos falamos pelo telefone antes mesmo de vê-la com meus próprios olhos.
Era quase como se as fortes emoções daquela primeira semana fizesse a entidade lutar de novo - ainda estava comigo, cravado em alguma parte de meu ser.
Os primeiros incidentes foram pequenos, e quase não me preocupei. Certa manhã, a cor do carro de um dos meus vizinhos mudou de um azul escuro para preto, fiquei olhando-o antes de sacudir a cabeça e deixando aquilo para lá. Dois dias depois, o nome de um colega de trabalho mudou de Fred para Dan. Cuidadosamente, questionei sobre com outras pessoas, mas todos me diziam que o nome dele sempre fora Dan. Achei que tinha simplesmente me enganado.
Então, por mais idiota que possa soar, eu estava mijando no banheiro de casa quando de repente me encontrei em uma rua aleatória. Ainda estava vestido com meu pijama, calças abaixadas e mijando - mas agora sendo observado por uma dúzia de pessoas em um ponto de ônibus lotado. Horrorizado, vesti minha roupa e corri antes que alguém chamasse a polícia. Consegui chegar em casa, mas a experiência me forçou a admitir que eu corria perigo. A entidade estava fazendo algo, mas eu não entendia o que era para conseguir fazer algo a respeito.
Mar apareceu naquela noite, mas ela tinha sua própria chave.
"Ei," Perguntei, confuso. "Como você conseguiu essa chave?"
Ela riu. "Você é um fofo. Você tem certeza que está tudo certo sobre essa decisão?" Ela abriu uma porta e entrou em um cômodo cheio de caixas. "Sei que morar junto é um grande passo, especialmente para nós que estamos namorando só a três meses."
Morar juntos? Eu literalmente tinha a conhecido semana passada. Porém, minha mãe sempre me chamou de espertinho por um motivo. Eu sabia quando calar a boca. Ao invés de fazer uma cena, falei que tudo estava bem - então fui para meu quarto e comecei a investigar.
Minhas coisas estavam exatamente onde eu as deixara, sem sinal de uma brecha de três meses, mas encontrei algo que era fora do normal: a data. Estremeci de raiva enquanto processava a verdade.
A entidade tinha tirado três meses da minha vida.
Com que diabos eu estava lidando? Que tipo de criatura conseguia consumir pedaços da alma de alguém desse jeito? Eu havia perdido a melhor parte do começo de um novo relacionamento, e nunca entenderia histórias compartilhadas ou piadas internas desse período. Algo absurdamente precioso tinha sido arrancado de mim, e eu estava furioso.
Essa fúria ajudou a suprimir a entidade. Eu nunca ingeria álcool. Bebia café religiosamente. Checava a data todos os dias quando acordava. Por três anos, consegui viver cada dia enquanto observava nada mais do que minimas alterações. Um fato social aqui ou ali - o emprego de alguém, quantos filhos certo amigo tinha, a organização das casas em alguma rua em específico, o horário que meu programa preferido passava na TV, essas coisas. Eram essas pequenas mudanças que me faziam lembrar que a criatura ainda estava com suas garras enfiadas no meu espírito. Nunca nesses três anos eu me deixei sair do estado de alerta.
Um dia, me descuidei. Me deixei ficar obcecado com o episódio final da minha série favorita. Era viciante, uma história fantástica. No ápice do programa, um menininho veio até minha poltrona e sacudiu meu braço.
Surpreso, perguntei, "Quem é você? Como você entrou aqui?"
Ele riu e sorriu abertamente. "Papai bobão!"
Meu coração pareceu ficar do tamanho de uma bolinha de gude. Eu soube imediatamente o que tinha acontecido. Depois de algumas perguntas disfarçadas, descobri que ele tinha dois anos de idade - e que era meu filho.
A agonia e o aperto em meu coração eram quase insuportáveis. Eu não somente tinha perdido o nascimento do meu filho, como também nunca veria seus primeiros anos de vida. Mar e eu tínhamos obviamente nos casado e começado uma família durante o tempo perdido, e eu não fazia ideia das tristezas e alegrias que esses anos tinham me proporcionado.
Estava nevando lá fora. Com meu repentino filho em meu colo, sentei e observei os flocos do lado de fora. Que tipo de vida eu teria se os lapsos de concentração podiam me custar anos? Precisava de ajuda.
A igreja não fazia ideia o que fazer. Os padres não acreditavam em mim, e disseram que eu tinha problemas de saúde, que não era um caso de possessão.
Os médicos fazia menos ideia ainda. Nada aparecia nos exames e testes feitos, mas aceitavam com grandes sorrisos quantias absurdas do meu dinheiro em troca de nada.
Quando comecei a ficar sem opção, decidi contar para Mar. Não havia como saber como era o seu ponto de vista. Eu era diferente quando não estava lá? Eu levava nosso filho para a escolinha? Fazia meu trabalho, meu papel? Claramente, fazia, pois ela parecia não desconfiar de nada, mas ainda fiquei com aquela terrível sensação de que algo devia estar faltando em sua vida, porque eu estava e não estava lá ao mesmo tempo.
Mas na noite em que eu preparei um belo jantar para a revelação, ela não abriu a porta com sua chave, e deu três suaves batidas. Ela estava vestida em um lindo vestido.
Ficou agradavelmente surpresa com a mesa posta. "Um jantar chique para um segundo encontro? Eu sabia que você era um bom partido."
Graças ao bom Senhor sei manter meu bico calado. Se tivesse balbuciado alguma coisa sobre sermos casados e termos um filho, provavelmente ela teria corrido para as colinas. Peguei seu casaco e nos sentamos para ter nosso segundo encontro.
Com perguntas escolhidas a dedo, consegui deduzir a verdade. Realmente era nosso segundo encontro. Ela viu alívio e felicidade em mim, mas interpretou isso como nervosismo de encontro. Eu simplesmente estava estasiado ao perceber que a entidade não estava mais comendo porções da minha vida. Os sintomas, como agora estava começando a percebê-los, eram mais como consequências de uma alma despedaçada. A criatura havia me ferido; me quebrado em pedaços. Talvez meu destino era viver minha vida fora de ordem, mas pelo menos eu a viveria.
E assim seguiu por alguns anos, pela minha perspectiva. Enquanto pequenas mudanças na política ou geográficas ocorriam diariamente, mudanças bruscas aconteciam dentro de alguns meses. Quando me encontrava em um novo local e tempo da minha vida, apenas me calava e ouvia, tendo certeza de explorar bem o terreno antes de cometer algum erro irreversível. No maior pulo de tempo, conheci meu neto de seis anos de idade, onde perguntei o que ele gostaria de ser quando crescer. "Escritor," me disse. Falei que era uma ótima ideia.
Depois, voltei ao segundo mês de namoro com Mar, onde tive a melhor noite de todas com ela no píer. Quando digo a melhor, quero dizer a melhor da minha vida. Sabendo o quão especial ela iria se tornar para mim, eu pedi para que viesse morar comigo. Comecei a viver os momentos que eu havia perdido e então percebi que, na verdade, eu nunca não estive lá. Eu sempre estava lá - eventualmente. Quando estávamos trazendo suas coisas para dentro de casa, parou por um momento e disse como admirava o meu amor, que era como se eu já a conhecesse pela vida toda e que nunca duvidei de quem realmente era.
Essa foi a primeira vez que ri de verdade, livremente e com todo meu coração, desde que a entidade tinha me ferido. Ela estava certa sobre meu amor por ela, mas o que considerava uma analogia boba e romântica era na verdade a realidade. Eu conhecia-a por toda minha vida, e eu tinha feito as pazes com a minha situação. Não era tão ruim assim dar uma espiada nos bons momentos futuros.
Mas é claro que não estaria escrevendo isso se não tivesse piorado. A entidade ainda estava em mim. Não tinha me ferido e ido para longe, como eu quis acreditar. O mais perto que posso descrever do meu entendimento disso é que a criatura estava se enterrando cada vez mais fundo na minha psique, fraturando-a em pedaços ainda menores. Ao invés de meses entre cada pulo, comecei a ter apenas semanas. Assim que notei o padrão, fiquei com medo de que meu destino fosse começar a mudar de tempos da minha vida em cada batida que meu coração fazia, para sempre confuso, para sempre perdido. Tendo apenas um instante em cada tempo significava que nunca mais eu conseguiria falar com ninguém, nunca conseguiria sustentar uma conversa, nunca expressaria ou receberia amor.
Enquanto as profundezas desse temor se esquentavam no meu peito, sentei em uma velha versão de mim e assisti os flocos de neve caindo do lado de fora. Isso era uma constante na minha vida: para o clima não importava quem eu era ou as dores que tinha que enfrentar. A natureza sempre estava lá. O cair da neve era uma ancora que fazia com que eu continuasse ali; a pura emoção de paz que me trazia era como uma panaceia em minhas feridas mentais, e eu nunca tinha mudado de tempo enquanto assistia o padrão de queda branco, pensando nas vezes em que tinha construído um boneco de neve quando criança.
Um adolescente tocou meu braço. "Vovô?"
"Uh?" Ele me arrancou dos meus pensamentos, então fui menos cuidadoso do que de costume. "Quem é você?"
Deu um meio sorriso, como se não soubesse se era uma brincadeira da minha parte. Me entregando um bolo de papéis, disse, "É minha primeira tentativa de escrever um romance. Você pode ler e me dizer o que acha?"
Ahh, claro. "Seguindo os sonhos de ser um escritor, estou vendo."
Ele ficou vermelho como um pimentão. "Tentando, né."
"Tá bom. Saia daqui, vou ler isso agora mesmo." As palavras saiam embaçadas e, irritado, procurei pelos óculos que deveria precisar para ler. Ser velho era horrível, e eu só queria voltar para meus anos mais jovens - mas não antes de ler aquelas páginas. Encontrei meus óculos no bolso do meu moletom, e comecei a leitura. Mar entrava e saia do cômodo, ainda linda, mas precisava me focar. Não sabia quanto tempo ainda tinha ali.
Parecia que tínhamos parentes visitando. Era Natal? Um par de adultos e algumas crianças que eu não reconhecia trotearam pelo corredor, e vi meu filho, agora um adulto, passando pela porta. Em um grupo, uma parte da família começou a andar de trenó lá fora.
Finalmente, terminei de ler a história, e chamei meu neto. Desceu correndo as escadas e entrou na sala. "O que achou?"
"Bem, é péssima," Falei verdadeiramente. "Mas é péssima pelas razões certas. Você ainda é jovem, então seus personagens se comportam como pessoas jovens, mas a estrutura da história em si é sólida." Pausei. "Eu não esperava que viraria uma história de terror."
Ele assentiu. "É uma reflexão dos tempos. As expectativas para o futuro são sombrias, não esperançosas como eram antigamente."
"Você é jovem demais para saber disso," falei. Uma ideia veio até mim. "Se você gosta de terror, sabe um pouco sobre criaturas estranhas?"
"Claro. Eu leio tido que posso. Adoro."
Cautelosamente, olhei as entradas para o nosso cômodo. Todos estavam ocupados lá fora. Pela primeira vez, me abri com alguém sobre o que eu estava passando. Em um tom apressado, contei para ele sobre minha consciência fragmentada.
Para um adolescente, absorveu bem. "Você tá falando sério?"
"Sim."
Vestiu o olhar determinado de um adulto que aceita uma missão importante. "Vou procurar sobre, ver o que posso descobrir. Você devia começar a escrever tudo que acontece. Construir um banco de dados. Talvez assim vamos conseguir mapear suas feridas mentais."
Uau. "Parece um bom plano." Fiquei surpreso. Isso fazia sentido, e eu não esperava que tivesse uma reação tão séria. "Mas como vou conseguir deixar as anotações em um lugar só?"
"Vamos arranjar algum lugar para colocar isso," Falou, franzindo a testa. "Então, eu coleto os dados, e podemos traçar os caminhos que está fazendo pela sua vida, descobrir se existe um padrão."
Pela primeira vez depois da piora, senti esperança. "O que acha de colocar debaixo da escada? Ninguém nunca vai lá."
"Claro." Ele se virou e saiu da sala.
Espiei, e vi ele mexendo em algum lugar perto da escada.
Finalmente, voltou com uma caixa que colocou em cima do carpete, e ao abrir revelou muitas e muitas folhas de papel. "Puta merda!" Exclamou.
Abalado, pisquei rapidamente, perdoando sua boca-suja por causa do choque. "Eu escrevi isso?"
Ele olhou para mim atordoado. "Sim! Ou pelo menos, você vai. Você ainda precisa escrevê-los e colocá-los debaixo da escada." Olhou de volta para os papéis e então fechou a caixa. "Bem, acho que é melhor você não ver o que está escrito. Isso podia tornar as coisas mais estranhas ainda."
Isso eu entendia bem. "Claro."
Ele engoliu a seco. "Tem mais ou menos umas cinquenta caixas como essa lá em baixo, todas cheias. Vou demorar para decifrar tudo isso." Fez um tom de voz muito sério. "Mas vou te salvar, vovô. Porque acho que ninguém mais pode além de mim."
Lágrimas corriam pelo meu rosto e não consegui evitar de chorar um pouco. Eu não tinha percebido quão solitário me tornara na minha prisão de pulos até encontrar alguém que finalmente me entendia. "Obrigado. Muito obrigado."
E então eu era jovem de novo, em uma terça-feira aleatória, no trabalho. Assim que a tristeza e o alívio passaram, ódio e determinação tomaram conta. Depois de sair do trabalho, peguei umas folhas e comecei a escrever. Enquanto as semanas iam passando em minha volta, enquanto essas semanas viravam dias, depois horas, eu escrevia em todo momento livre que tinha sobre quando e onde estava. Coloquei-as debaixo da escada fora de ordem; minha primeira caixa na verdade era a trigésima, e minha última caixa era a primeira. Assim que fiz cinquenta caixas escritas da minha perspectiva - e quando meus pulos agora duravam minutos - eu soube que tudo estava nas mãos de meu neto.
Abaixei a cabeça e parei de olhar. Não conseguia mais aguentar o rio de mudanças. Nomes e lugares e datas e empregos e cores e pessoas estavam todos diferentes e errados.
Eu nunca fora tão velho. Estava sentado, olhando a neve cair. Um homem com pelo menso trinta anos, que eu vagamente reconhecia entrou na sala. "Venha, acho que finalmente descobri."
Eu era tão frágil que me mexer doía muito. "Você é ele? Você é meu neto?"
"Sim." Me levou até um quarto cheio de estranhos equipamentos e me sentou em uma cadeira de borracha virada para um espelho duas vezes maior que a altura de um homem. "O padrão finalmente se revelou."
"Por quanto tempo você trabalhou nisso?" Perguntei, horrorizado. "Diga que você não perdeu sua vida como estou perdendo a minha!"
Sua expressão era tanto fria como uma pedra e furiosamente resoluta. "Valerá a pena." Ele trouxe dois bastões de metal para perto do meu braço e então assentiu para o espelho. "Olhe. Esse choque é precisamente calibrado."
O choque de seu equipamento foi surpreendente, mas não doloroso. No espelho, vi uma silhueta rápida de luz aparecer por cima de meus ombros e cabeça. A eletricidade se moveu pela criatura como uma onda, brevemente revelando a terrível natureza do que estava acontecendo comigo. Uma boca gorda como de uma sangue-suga estava grudada na parte de trás da minha cabeça, vinha até as minhas sobrancelhas e cobria ambas orelhas, e seu corpo de lesma caia sob meus ombros e adentrava na minha alma.
Era um parasita.
E estava se alimentando da minha mente.
Meu então adulto neto segurou minha mão enquanto eu era atordoado pelo terror. Depois de um breve momento, falou comigo. "Removê-lo será muito, muito doloroso. Você quer?"
Com medo, perguntei, "Mar está aqui?"
Sua expressão suavizou. "Não. Faz alguns anos que não."
Eu podia perceber pelos traços em seu rosto o que acontecera, mas não queria que fosse verdade. "Como?"
"Nós conversamos sobre isso bastante," respondeu. "Tem certeza que quer saber? Nunca faz você se sentir melhor."
Lágrimas se acumularam em meus olhos. "Então não ligo se doer, ou se eu morrer. Eu não quero estar em uma época onde ela não está viva."
Fez um som de simpatia e entendimento e então voltou para sua maquina para prender diversos fios, diodos, e outras partes de tecnologia em meus membros e testa. Enquanto fazia isso, falava. "Trabalhei por duas décadas para conseguir desvendar isso, e recebi muita ajuda de diversos outros pesquisadores e cientistas do ocultismo. Esse parasita tecnicamente não existe no nosso plano. É um dos últimos do seu tipo, os µ¬ßµ, e se alimenta dos plexos mentais, da alma e da consciência quântica/realidade. Quando detalhes como cores e nomes mudavam, você não estava ficando louco. A teia da sua existência estava perdendo alguns fios enquanto a criatura te devorava."
Não entendia por completo. Olhei para cima, confuso, enquanto ele colocava um círculo de eletrodos como uma coroa na minha cabeça, na exata linha onde a boca do parasita se encontrava. "O que é µ¬ßµ?"
Ele parou e ficou pálido. "Esqueci que você não sabe. Você é sortudo, acredite." Depois de um longo suspiro, começou a se mover de novo, e posicionou seus dedos perto de alguns interruptores. "Pronto? Isso aqui é feito para que seu sistema nervoso fique extremamente
insosso para o parasita, mas basicamente é uma terapia de choque."
Eu ainda podia ver o sorriso de Mar. Mesmo que estivesse morta, eu tinha estado com ela fazia poucos minutos. "Pode começar."
O clique do interruptor ecoou em meus ouvidos, e quase ri de tão suave que o choque era. Quase nem o sentia, no começo. Então, vi o espelho estremecer, e meu corpo naquele reflexo convulsionar. Ah. Não. Doía sim. Doía mais do que qualquer outra coisa que já sentira na vida. Só que era tão intenso que minha mente não tivera tempo ainda de processar imediatamente.
Enquanto minha visão tremia e um fogo queimava cada nervo do meu corpo, eu podia ver o reflexo da silhueta de luz do parasita se remexendo na minha cabeça, compartilhando de minha agonia. Tinha garras - seis membros de lagarto com garras em seu corpo de lesma - que se agarravam à mim para tentar continuar grudado.
A eletricidade fez com que minhas memórias se acendessem.
O sorriso de Mar, acima de todo o resto, brilhava em frente de uma lareira enquanto a neve caia na janela atrás dela. As bordas dessa memória começaram a se acender, e percebi que minha vida agora era uma linha continua de experiências - era apenas a consciência disso que tinha sido fragmentada pela voraz e diabólica criatura em meus ombros.
Eu nunca conseguira estar lá no nascimento de meu filho. Eu pulei diversas vezes em volta dessa memória, mas nunca vivenciei-la. Pela primeira vez, pude estar lá para segurar a mão de Mar e acompanhá-la.
Não. Não! Aquele momento onde eu segurava sua mão enquanto deitada em cama de hospital mudou para uma razão totalmente diferente. Não isso! Por que, Deus? Era tão cruel me fazer lembrar disso. Comecei a chorar enquanto enfermeiras corriam para o quarto. Eu não queria saber. Não queria passar pro aquela experiencia. Eu tinha visto todas as partes boas, mas não queria ver a pior delas - o fim inevitável que todos temos que encarar um dia.
Não valia a pena. Era contaminado. Toda a felicidade que recebi vinha com o dobro em dor.
O fogo em meu corpo e mente aumentaram em uma tortura continua, e gritei.
Meu grito virou um urro de surpresa quando as máquinas paravam e os choques lentamente diminuíam. A neve não estava mais caindo em volta da minha vida; eu estava caminhando na floresta em um dia claro de verão.
Meu Deus do céu.
Me virei para ver a criatura se aproximando. Era a mesma ausência de significado; o mesmo abismo na realidade. Rastejou em minha direção, assim como antes - mas dessa vez proferiu um som de ódio e foi embora. Me levantei, maravilhado por ser jovem de novo e por estar livre do parasita. Meu neto tinha realmente conseguido! Ele me tornara uma refeição sem-sal, assim o predador de alma e corpo foi procurar por outro lanche.
Voltei para casa tonto.
E enquanto eu estava lá, sentado, tentando processar tudo que acontecera, o telefone tocou. Eu sabia quem era. Era Marjorie, ligando pela primeira vez por um motivo aparentemente muito importante, o qual trinta anos depois me revelaria ter sido uma desculpa só para ouvir minha voz.
Mas tudo que eu conseguia enxergar era ela deitada em uma cama de hospital, morta. Acabaria com uma dor inexplicável e solidão. Eu me tornaria um velho, deixado sentando sozinho em uma casa vazia, sua alma gêmea não mais no mesmo plano. No final de tudo, eu só teria uma coisa: o prazer de me sentar e ver a neve cair pela janela.
Mas agora, graças ao meu neto, eu também teria minhas memórias. Seria um passeio de montanha-russa, não importa como fosse terminar.
Com um impulso repentino, atendi o telefone. Com um sorriso, perguntei. "Oi, quem fala?"
Mesmo que eu já soubesse.
Nota
do autor: Juntos, eu e meu avô escrevemos o romance sobre sua vida.
Infelizmente, seu Alzheimer progrediu rapidamente, e nunca
conseguimos terminar. Ele ainda está vivo, mas imagino que,
mentalmente, está em um lugar melhor do que sua casa de repouso.
Gosto de pensar que está revivendo seus anos mais joviais, vivendo
uma vida feliz, pois a realidade é muito mais fria. Está nevando
hoje; ele ama a neve. Da última vez que eu o visitei, não conseguiu
me reconhecer, mas sorriu para mim e ficamos juntos observando a neve
cair lá fora..
Isso ta muito bom. To perplexa com o final!
ResponderExcluirPramim escorreu uma lagrima quando li a nota do autor.
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