Abri meus olhos devagar.
Minha cabeça parecia flutuar e uma dor maçante cercava minha garganta. Sentia sede. Isso foi a primeira coisa que notei.
Umedeci meus lábios secos enquanto os meus arredores desvaneciam de foco. Meu corpo doía e percebi que estava amarrado firmemente a uma cadeira de metal no meio de um quarto vazio. A paredes de concreto estavam manchadas e sujas, debaixo dos meus pés descalços estava molhado e frio.
Havia uma única lâmpada, balançando do teto por uma corda. Projetava uma sombra em movimento. Uma porta aberta está diante de mim, mas não conseguia ver nada além de uma parede de um corredor.
Tentei clarear minha mente, tentei lembrar como havia chegado ali. Fechei meus olhos com força e me forcei a não entrar em pânico. Diminuí a velocidade da minha respiração e foquei em meus pensamentos, tentando me forçar a lembrar o motivo para eu estar ali.
Eu não lembrava de nada.
Abri meus olhos e soltei o ar, minha garganta latejante ressecada. Podia ouvir sons ecoando pelas paredes de fora do corredor. Gritos, batidas, urros, todos muito distantes, mas isso não ajudou a acalmar meus nervos.
"Olá?!" Falei alto, as palavras parecendo romper minhas cordas vocais. Senti meu peito se contrair pela dor, mas pigarreei e gritei de novo.
"Tem alguém aí?! Olá?!"
O corredor escuro continuou silencioso exceto pelos ecos constantes. Calei a boca e tentei me desvencilhar de minhas amarras, mas a corda estava amarrada de um jeito impossivelmente apertado. Lutei contra minha imaginação que enchia minha mente de cenários horripilantes do que me esperava. Se eu conseguisse lembrar pelo menos de alguma coisinha!
De repente, passos surgiram da porta, em um padrão rápido de pés pequenos. Minhas esperanças se renovaram e voltei minha atenção para a porta, rezando que fosse ajuda.
Um menino correu para dentro da sala, usando um onesie vermelho, dos tipos que vem com meias acopladas. Sobre seu rosto estava uma máscara de plástico de Diabo. Os buracos dos olhos revelavam duas bolitas azuis enormes, olhos que me me olhavam com curiosidade. Meio atordoado, abri a boca para falar algo quando notei que algo estava estranho. Seus olhos eram enormes, impossivelmente redondos e esbugalhados. Fez com que um arrepio agoniante descesse por minha espinha, mas deixei de lado. A criança poderia me libertar.
"Ei!" Cochichei, urgentemente, "Ei menino, você pode me tirar daqui?!"
O garoto deu um passo para frente, virando a cabeça de lado, mas ainda em silêncio.
Sacudi meus braços amarrados contra a cadeira, "Me solte, por favor, eu não devia estar aqui, alguém cometeu algum erro!"
O garoto me observou por de trás da máscara e parou bem na minha frente. Se inclinou para frente, sussurrando, sua voz como seda molhada, "Você fez uma coisa ruim..."
Confuso, sacudi a cabeça, " Não! Não, isso é um erro! Eu não fiz nada!"
Os enormes olhos azuis se encheram de tristeza, "Ah, você fez sim, algo muito, muito ruim..."
Sacudi novamente a cabeça, mais violentamente, "Não! Me perdoe! Eu não lembro, por favor, me deixe sair dessa cadeira!"
Subitamente, antes que eu ou ele pudéssemos falar qualquer coisa, um homem veio correndo para a sala. Ele era gordo e vestia um macacão, seu rosto enrugado revirado em raiva acumulada. Em seus braços segurava uma espingarda de cano curto.
"Não fiz nada!" Chorei enquanto ele avançava em nossa direção, minha voz oscilando, "Eu não devia estar aqui!"
O gigante me ignorou e agarrou a criança e colocou-o contra a parede. O menino grunhiu quando suas costas bateram no concreto e seus olhos se levantaram para encontrar o homem grisalho.
Sem dizer uma palavra, o homem ergueu a espingarda, colocou contra a testa do garoto e estourou-lhe os miolos. Pedaços de cérebro respingaram nas paredes com um choque que me socou no estomago como uma soqueira de ferro. Havia um zumbido em meus ouvidos e o tempo parecia ter parado enquanto eu assistia o corpo sem cabeça sucumbir ao chão.
O ar voltou para os meus pulmões e o tempo pareceu voltar.
"JESUS CRISTO DO CÉU!" Gritei, lutando contra as amarras, meus olhos quase caindo do rosto de tanto pavor, "QUE PORRA É ESSA?!"
O homem ignorou meus gritos enquanto se curvava para recolher o corpo. Jogou o cadáver dilacerado sobre os ombros e saiu pela porta.
Logo, o corredor irrompeu em risadas maliciosas, um coro de vozes ululando em alegria. Fechei meus olhos, um som era ensurdecedor que preenchia meus poros com terror.
Minutos depois, a risada se dissipou e cautelosamente abri meus olhos, sem acreditar no que acabara de presenciar.
"Olá."
Dei um pulo quando percebi que outro homem estava diante de mim. Ele vestia uma camiseta branca de botão simples e uma calça jeans. Seus cabelos castanhos estavam cortados bem curtos e parecia ter uns trinta e poucos anos. Seus olhos verdes eram vazios e sem vida, seus lábios grossos repuxados para baixo nos cantos.
"O que está acontecendo? Onde estou?!" Chorei, o medo queimante se acumulando em meu estômago.
O homem cruzou os braços, "Então você é o novato, uh?" Balançou a cabeça, "O seu tipo me enoja."
Haviam perguntas na ponta da minha língua, mas ele balançou os braços, mandando eu ficar calado.
Ele passou a língua pelos dentes superiores, "Parece que você já viu alguns dos horrores que se abrigam nesse lugar, né? É, posso perceber pelo seu olhar. Está aterrorizado. Já viu algo, não é mesmo? O passado não parece tão ruim agora, né? Você está aqui só a cinco minutos e já está cagando nas calças."
"Onde estou?" Arfei, sem conseguir mais ficar calado, "O que vocês querem comigo?"
O homem segurou as mãos atrás das costas, "Aposto que você está querendo sair daqui, não quer? Aposto que você quer voltar para casa, para a sua família, tudo."
"Por favor," eu o interrompi, "Seja lá o que eu tenha feito para você... eu sinto muito, de verdade, mas eu não lembro!"
O homem revirou os olhos, "Você não fez nada para mim. Fez para você mesmo. Realmente não se lembra de nada?"
Balancei a cabeça negativamente e senti lágrimas nos meus olhos, medo líquido.
Ele me olhou com desprezo, "Você esperou que sua mulher saísse para o trabalho e então foi para o galpão e se enforcou. Você está morto."
A memória recente surgiu como um monstro de um pântano. Não importava o quanto eu quisesse negar... ele estava certo. Eu tinha me matado. O fato passou pelo meu cérebro como um trem-bala e me deixou pensativo.
"Meu nome é Danny, a propósito", falou, ignorando minha cara chocada, " E eu sou o número dois aqui. Eu tomo conta do processo de orientação. Quero que seja rápido porque estou de
saco cheiro de ter que repetir isso para vocês, suicidas patéticos. Você tem direito a uma pergunta antes de eu começar."
Ele me olhou de cima a baixo e eu tentei organizar meus pensamentos embaralhados em algo coeso. Era tudo aterrorizante. Por que eu havia me matado? Lutei contra o pânico e lentamente a névoa da confusão foi se dissipando. Eu havia acabado de perder meu emprego. Sim... esse foi o começo. Apertei meus olhos e forcei que outras memórias surgissem. Eu tinha acabado de perder meu emprego e estava prestes a perder a casa. Minha esposa... Tess... descobriu o que estava acontecendo e ia me deixar. Eu não tinha para onde fugir, não tinha outra opção. A demissão veio do nada e não tinha economias guardadas. Estava falido, logo me tornaria um sem teto, e minha esposa me odiava por isso. Mas havia outra coisa... sim... é, tinha mesmo. Ela estava me traindo. Eu havia lido algumas mensagens em seu celular enquanto ela dormia a noite e confirmei minhas suspeitas. Minha vida tinha se transformado em merda e não havia mais opções para mim. Humilhado e envergonhado, decidi que a morte era minha única saída.
"Ei, seu fodido, você tem uma pergunta ou não?" Danny falou, estalando os dedos na minha cara.
Voltei a realidade e perguntei a única coisa que importava.
"Aqui é o Inferno?"
Danny bufou, "Sempre a mesma pergunta." Ele começou a andar para lá e para cá na minha frente, "Não, aqui não é o inferno. Também não é o céu. Aqui é a Fazenda Negra. E não, não fui eu que nomeei assim. Aqui é onde Deus manda as almas que tiraram sua própria vida. Suicidas. Entenda, ele não sabe muito bem o que fazer com vocês e bem... nem o Satã sabe. Existem pessoas que são genuinamente boas que se matam. Parece cruel mandá-las para o Inferno por toda eternidade por um momento de fraqueza, sabe? Pessoalmente, só acho que Deus e Satã estavam cansados de discutir sobre isso. Então, bem, eles mandam vocês para cá, para a Fazenda Negra."
"Foi... foi Deus que criou esse lugar?" Perguntei, ficando cada vez mais confuso.
Danny cuspiu no chão, rindo, "Claro, em algum momento. Mas ele perdeu o controle quando colocou O Porco no controle."
"O que é O Porco?" Perguntei, mas em dúvida se queria mesmo saber a resposta.
Danny levantou uma mão, irritado, "Porra, posso terminar de falar?! Deus criou esse lugar, éons atrás, colocou O Porco no comando, e então esqueceu daqui por um tempo. Bem, quando virou as costas, O Porco decidiu usar seus novos poderes para tentar criar seu próprio mundinho. Essa bagunça que você está vendo à sua volta, é as sobras fraturadas deste experimento. A Fazenda Negra era bem legal antes, mas O Porco queria que as coisas fossem diferentes. Queria criar sua própria visão. Esses seres que você vê, esses monstros? São tentativas do Porco de criar vida funcional. Ao invés de replicar a terra de Deus, essas criações mutantes e horríveis são cheias de pecado e ódio. Estão desenfreados aqui, inabaláveis. Esse lugar é um caos. A Fazenda Negra é um circo de aberrações e monstros. E é a sua eternidade."
Medo fervilhou em meu estômago como óleo quente. Não. Não, isso não podia ser meu fim. Eu não acreditava em coisas daquele tipo. Não é real! Logo eu acordaria e percebera que foi apenas um pesadelo. Tem que ser!
Danny se pôs na minha frente e me deu tapinhas gentis no rosto, "Ei, ei! Não entre em histeria ainda. Não terminei aqui."
Levantei meus olhos marejados para encontrar com os dele.
Danny sorriu, "Você sempre pode alimentar O Porco."
Minha respiração parecia queimar meus pulmões, "O-o que você que-quer dizer com isso?"
Danny abriu os braços, ainda sorrindo, "É simples assim. Alimente O Porco. Se você alimentar, há uma chance dele te mandar de volta a vida."
"E o-o que acon-acontece se ele nã-não mandar?", gaguejei.
"Você será mandando para o Inferno. Então jogue a moeda, se tiver uma. Fique aqui conosco ou alimente O Porco. Se escolher ficar... te deixo ir para lá," apontou para a porta, "Mas te asseguro... o que te espera no fim do corredor... bem... vamos dizer que o inferno não é tão pior que isso."
Engoli seco, tentando dar o meu melhor para digerir tudo aquilo. Porque eu não tentaria alimentar O Porco? Seja lá o que isso signifique. Se ainda existia um resquício de esperança, eu o faria. Uma eternidade nesse lugar, na Fazenda Negra, no inferno ou... ou alimentar O Porco? Eu faria qualquer coisa para voltar. Esse pesadelo fazia meus problemas parecer nada.
Danny levantou a mão antes que eu pudesse falar, "Vou deixá-lo pensando um pouco. Volto mais tarde."
"Eu quero alimentar O Porco!" Gritei, sem querer passar mais nenhum segundo naquela sala. Pude ouvir uma mulher gritando no fim do corredor, seu choro aumentando enquanto algo carnudo batia contra ela. Meu respirar dava pontadas agudas em meus pulmões e minha garganta ardia. Danny notou o som e sorriu abertamente.
"Que som horroroso, né?" Falou suavemente enquanto a voz da mulher partia-se em agonia. Algo ainda estava batendo contra ela, o som da carne espancada fazendo minha imaginação se inundar com pesadelos.
"Por favor," arfei, " Só... só meu deixe alimentar O Porco. Não quero ficar mais nem um segundo aqui."
Danny se virou e foi andando, "Vou voltar mais tarde. Aproveite o seu tempo sozinho. Pense com carinho na sua situação. Pese suas opções. E lembre-se.... foi você que se pôs aqui."
E com isso, foi embora, me deixando no quarto mal iluminado.
As lágrimas rolavam por meu rosto.
A mulher continuou a gritar por horas.
***
Em algum ponto, eu caí em um semissono. A escuridão da sala parecia me pressionar e meus olhos se fecharam. Meu corpo doía e minha garganta era um círculo de fogo. A sede se instalara na minha garganta como um caco de vidro. Meus lábios pareciam papel amassado. Em minha cabeça, estouros de trovões. O quarto saia e entrava em foco e minha mente vagava pelos sons horripilantes que nunca cessavam.
Estava perdido em um nevoeiro, sem perceber que algo estava deslizando para dentro da sala até que senti uma fincada forte no meu dedão. Saí de meu torpor enquanto meu pé descalço pulsava em dor. Gritei e tentei me mexer, mas minhas amarras eram firmes.
O foco da minha visão voltou e pisquei em agonia enquanto sentia o sangue escorrer por entre meus dedos. Olhei para baixo para ver a fonte de minha dor e senti um grito se formando na minha garganta.
Olhando lá debaixo para mim, estava um homem sem braços. Ele se arrastava pelo chão como um verme, sua cabeça careca cheia de cicatrizes e sujeira. Suas pernas estavam presas bem juntas por arame farpado, forçando-o a se remexer pelo chão para se mover. Seus olhos não tinham pálpebras e estavam bem arregalados, duas bolas brancas avermelhadas que me fitavam famintas. Seus dentes tinham sido removidos e substituídos por grandes parafusos que saiam de suas gengivas como uma formação rochosa irregular.
Em volta de seu pescoço estava uma coleira de corrente, a qual segui com os olhos pelo chão até a porta aberta. A ponta da coleira estava sendo segurada por um homem alto e nu. Não tinha pelos e era flácido, coberto em cicatrizes similares de seu animalzinho de estimação. Uma sacola suja tinha sido colocada sobre sua cabeça e não pude ver muito de seu rosto, a não ser pelo olho vermelho que espiava pelo único furo da sacola.
Ele me olhou e agarrou seu pênis inchado, sua respiração pesada. Enquanto o homem sem braços se remexia até mim de novo, seu dono começou a se masturbar. Eu gritei quanto a boca cheia de parafusos me mordeu de novo, mas meus berros pareciam estimular ainda mais o homem nu.
"Sai de mim! Pare!" Gritei, horrorizado. Tentei chutar o homem, dando meu melhor para evitar os metais afiados. Dei com o calcanhar no topo da cabeça e ele gritou quando sua cabeça bateu contra o chão.
Um gemido de prazer escapou da boca do homem da sacola e me virei enquanto uma névoa preta pulverizava o chão. Houve um remexer de correntes e me virei novamente para vê-los indo embora, o homem sem braços sendo arrastado pelo pescoço. Olhei para onde o homem nu havia ejaculado e vi uma poça de formigas mortas. Vomitei em mim mesmo, uma mistura de bile e outros fluídos.
"EU QUERO SAIR DAQUI!" Gritei, vomito escorrendo pelo meu queixo, "EU NÃO PERTENÇO A ESSE LUGAR!"
Ouvi os dois homens irem embora pelo corredor, o som das correntes acompanhados pelo da carne sendo arrastada pelo concreto. Gritei de novo, mas sabia que ninguém ia me ajudar. Cuspi uma mistura de catarro com bile no chão, livrando minha boca do azedume. A força, tentei me acalmar. Não foi fácil.
Depois de um tempo, ouvi outra pessoa se aproximando. Eu estava em um período de calmaria miserável, minha mente era uma tela branca em um mar negro, mas o barulho me retirou do transe. Os músculos dos meus braços queimavam por estar amarrados por tanto tempo e eu o estimulava desesperadamente, tentando me preparar ao máximo para o próximo horror que entraria por aquela porta.
Os passos se aproximavam e então uma mulher entrou na sala. Ela parou na porta e olhou para mim. Ela não tinha um olho, era apenas um buraco cavernoso em seu crânio. Seu cabelo era bagunçado e selvagem, um emaranhado marrom como um ninho esquecido. Sua pele era pálida e suja, e estava vestida em farrapos. Não consegui descobrir sua idade, mas havia maturidade no olho que sobrara.
“Ainda pensando? ” Me perguntou, com sua voz quebradiça e amaldiçoada.
“Que? ”
Ele deu um passo em minha direção, “Você ainda está se decidindo se vai alimentar O Porco ou não? ”
Olhei cautelosamente para ela, “É.... estou. Quem é você? O que você quer?
“Uma vez estive na sua posição, ” disse, “tentando decidir meu destino. Mal podia acreditar que isso tudo estava acontecendo... que é isso que acontece depois que morremos. Não foi assim que eu aprendi... a religião não me avisou sobre esse lugar. ”
Tentei me soltar mais uma vez antes de perguntar, “Você também se matou? Você é uma pessoa como eu? Não é uma daquelas... criações? ”
Ela riu, “Quebra meu coração saber que você tem ainda que perguntar, ” ela tocou o buraco que um dia fora seu olho, “Mas entendo sua cautela. Sim, sou uma suicida. Estou aqui a muito, muito tempo. Mas essa foi uma escolha minha. Decidi que preferia ficar aqui. ”
Gesticulei com a cabeça em direção da porta, “O que tem lá fora? O que é esse lugar? ”
Ela suspirou longamente e se apoiou na porta, “Mal consigo descrever esse lugar. Não existe nada igual, nada que você já tenha vivenciado. Você sai do corredor e vai para... lá para.... e...” Ela engoliu a seco, “Você tem que ver para entender. ”
“É muito ruim? Porque essas pessoas mutantes estão machucando e matando uns aos outros? ” Perguntei.
Ela deixou a cabeça encostar na parede, “Levariam anos para você entender completamente esse lugar. Anos que você não tem. Agora você tem que fazer uma decisão. Fique ou Alimente O Porco. Eles dizem que o inferno é pior que aqui, mas não pode ser tão pior. Monstros e Suicidas rodeiam a Fazenda Negra... matando, estuprando, brutalizando... e então você acorda se perguntando quanto tempo consegue sobreviver até que alguém te mate. É um ciclo infinito. ”
“Então por que você ficou? ” Pressionei-a, “Por que não alimentou O Porco? Eu nem sei o que isso significa, mas faria qualquer coisa por uma chance de voltar. Não poso ficar aqui... simplesmente não posso! ”
Ela sorriu tristemente para mim, “Por que? Por que escolhi isso? É bem simples, na verdade. Sou covarde. Eu era covarde em vida e sou covarde em morte. Quando chegou a hora, escolhi ficar aqui. Eu não sabia o que me esperava lá fora. Se resumiu a uma simples escolha feita pelo meu próprio medo. ”
“O que é O Porco? O que ele faz com a gente? ” Perguntei.
Ela se virou para ir embora, “Creio que você mesmo terá que descobrir isso. Mas fique avisado: pense bem antes de decidir. As vezes sofrer pelo seu medo é melhor que sofrer por toda a eternidade. Seja corajoso. ”
“O que eu faço?!” Gritei, balançando minha cadeira enquanto ela atravessava a porta.
Ela parou e olhou uma última vez por cima do ombro. Seu olho me fulminou e sua voz foi apenas um sussurro, “Alimente O Porco. ”
E com isso ela se foi.
Fiquei sentado em silêncio novamente. Minha mente girava, desesperadamente avaliando minhas opções. Ainda não conseguia compreender a total situação que me encontrava. Era demais para mim. O outro lado da vida não devia ser assim. Não sabia o que esperava, mas com certeza não era esse pesadelo. Perguntas se debatiam na minha mente como ondas gélidas contra o casco de um navio naufragando. Como eu poderia fazer uma escolha se nem sabia o que isso me traria?
Esse lugar, a Fazenda Negra.... Eu não podia ficar ali. Mas e se eu fosse para o Inferno? O que aconteceria se eu não fosse mandado de volta? Seria mandado para o fogo. Minha existência seria condenada a miséria eterna. Entretanto aqui… aqui haviam pessoas como eu. Suicidas. Não eram somente monstros e assassinos mutilados. Talvez eu possa me encaixar com eles, bolar um plano para escaparmos juntos para um lugar melhor. Com certeza isso seria melhor que o inferno.
Não. Não seria assim que eu passaria o resto da minha eternidade. Me recuso a aceitar isso. Se houvesse esperança, por menor que fosse, não iria querer ficar me questionando como poderia ter sido. Não queria ser atormentado pela dúvida. Eu iria alimentar O Porco e aceitaria sua escolha sobre meu destino. Quando pesei as medidas, essa era minha única opção.
Eu iria alimentar O Porco.
“Ei! Olá?! Danny! ” Berrei, balançando em minha cadeira, “Já me decidi! Danny! ”
Depois de alguns segundos, ouvi passos ecoando pelo corredor em minha direção.
Danny passou pela porta, uma expressão irritada em seu rosto.
“Fiz minha escolha, ” Falei, “vou alimentar O Porco. ”
“Parece que você pensou muito desde que sai, ” Danny constatou ironicamente.
Lambi os lábios secos, “Você faria a mesma coisa se estivesse em meu lugar. ”
Danny se pôs atrás de mim, “Uma vez estive na mesma posição que você. E escolhi diferente. ” Arregalei meus olhos, mas logo Danny cobriu minha cabeça com um tecido fino, me cegando. Puxei bastante ar para os pulmões, mas minhas respiradas não pareciam conter oxigênio.
Senti Danny cortar minhas amarras e meu corpo se aliviou quando meus músculos duros foram libertados. Girei os ombros quando minhas mãos foram soltas e gemi com aquela sensação. Cocei as costas e depois me alonguei, meus ossos estralando.
“Não tire a venda e me acompanhe, ” Danny disse, me puxando.
Minhas pernas tremiam pelo peso inesperado, principalmente minhas coxas, por ter ficado tanto tempo na mesma posição. Estiquei as mãos cegamente à minha frente e encontrei os ombros de Danny. Descansei minhas mãos sobre ele enquanto Danny me guiava para fora.
Quando entramos no corredor, pude ouvir sons que antes não havia ouvido ainda. O barulho de correntes, um som longo de carne se partindo, algo vomitando... esses ruídos continuavam para sempre em meus ouvidos, pintando a escuridão de minha visão com cenas imaginárias de terror. Apertei o ombro de Danny com mais força, tropeçando a suas costas, meu coração disparado.
Ouvi algo se arrastando atrás de nós, mas Danny não parecia ter percebido. Ou se percebeu, nem ligou. O barulho de carne batendo contra a parede pareceu soar a centímetros de mim e de repente pude sentir um respirar quente na minha nuca, seguido de um estalar de língua contra os dentes. Minha respiração ficou ainda mais acelerada enquanto o medo me esmagava.
“ ‘Cê tá indo ‘limentar O Porco, né não? ” Algo sussurrou em meu ouvido. Senti algo ser pressionado contra a parte de trás da minha cabeça, mas só tentei não pensar no que aquilo poderá ser. Era molhado e gosmento e ouvi a coisa dar uma risadinha.
“ É um porquin’ faminto, ‘ntão tem cerrrteza dê dá a comida d’el agorrra, ” a coisa sussurrou de novo, a voz grossa se um jeito que nem sabia ser possível. Parecia uma série de grunhidos e gemidos postos juntos para formar palavras quebradas.
Para meu alívio, ouvi a coisa voltar de onde viera e continuei a seguir Danny. O mesmo continuou em silêncio enquanto andávamos, e logo pude sentir uma mudança no ar. O calor pesado mudou para uma temperatura mais fria, quase agradável, mas logo continuou a cair até que meu corpo começar a tremer violentamente contra o frio. Não conseguia ver nada, mas pude sentir uma brisa, como se estivéssemos na rua. Mas não havia ouvido Danny abrindo nenhuma porta, porém nada ali era normal. Era como se a realidade tivesse se partido e derretido.
Com os dentes batendo, fui arrebatado por um calor inesperado e arfei. Meus pés se desencontraram quando o terreno mudou e agora eu parecia andar sobre algo semelhante a metal morno. Meus ouvidos foram preenchidos por ruídos de fornos enormes e maquinas industriais. Eu não podia ver, mas senti que havia uma grande campo aberto mais a frente. Senti o cheiro de cinzas e senti um gosto sujo na minha boca, o suor já se formando ao longo da minha espinha.
De repente, bati contra Danny, que havia parado de súbito. Dei alguns passinhos para trás, rapidamente, e sussurrei desculpas. Pude ouvir movimentação a nossa frente, um tintilar de correntes e clique estranho no chão de metal. Outra coisa também... algo... roncando.
E então a sala se preencheu com um barulho ensurdecedor de um porco guinchado. Cobri meus ouvidos, minha cabeça girando por causa do som extremamente agudo. Rangi os dentes enquanto o som ecoava pelo chão de metal e ia se dissipando em uma série de guinchos e grunhidos.
Parecia ser absolutamente enorme.
"Trouxe mais um," Danny anunciou, um leve tom de respeito em sua voz. "Ele quer Alimentar O Porco."
Esperei, esperando ouvir uma resposta, o pano sobre meus olhos me deixando no escuro. Percebi que meus joelhos tremiam e que estava coberto de suor. Estava totalmente aterrorizado.
"Se é isso que desejas," Danny disse e senti sua mão sobre a minha. Aparentemente acontecera uma conversa silenciosa que eu não havia participado, então Danny me pegou pelo pulso e puxou-me para frente.
"Aproxime-se do Porco," me instruiu.
Meu corpo todo tremia e eu não conseguia me mover. Sem poder enxergar, ergui as mãos, tateando o nada, o calor e as cinzar me deixando enjoado. Senta como se fosse vomitar, meu estomago borbulhando. Eu não sabia onde estava nem que horrores estavam diante de mim. Me senti perdido e minúsculo, as minhas lágrimas ensopando a venda.
"Po-por favor," Implorei, "Me deixem ver o que está acontecendo."
Danny apareceu atrás de mim, me empurrando para a frente. Guiou minhas mãos para algo enquanto pisávamos no chão em uníssono. Mesmo com o pano em meu rosto, eu podia ver uma massa negra gigante erguendo-se como uma torre sobre mim. Era como um ponto preto em uma tela escura.
Enquanto ia para frente, fui açoitado por um cheiro horrível que me deu mais ânsia, então me virei. O aperto de Danny ficou mais forte e me forçou a continuar. Eu podia sentir algo bem perto à minha frente, uma massa de carne viva e enorme. O cheiro alcançou níveis absurdos de nojento e quase vomitei de novo. O ar quente estava sendo jogado em meu rosto, uma brisa aquecida que vinha em lufadas curtas.
Vomitei na carapuça, a fonte do cheiro fumegando no ar quente. Engasguei como a bile derramada sobre o tecido, a imersão momentaneamente cortando meu oxigênio. Danny deu um tapa em minhas mãos que queriam tirar a venda e eu levei alguns segundos para conseguir respirar novamente. Eu estava chorando abertamente agora, o medo e a miséria destruindo meu poder de vontade.
O pano molhado fedia enquanto eu puxava o ar. O ácido do meu próprio estomago cobria minha pele e eu só implorava que isso tudo terminasse logo.
E então algo guinchou bem na minha frente.
Senti minha bexiga ceder. Eu estava de frente para O Porco.
Ele era a fonte da escuridão que me assolava; uma criatura gorda, titânica, que preenchia meus sentidos a cada lufada de ar que jogava em meu rosto.
Danny levantou minha mão e me fez tocar o focinho do Porco. Recolhi meu braço imediatamente, mas Danny forçou minha mão de volta para lá. Seu pelo era duro e espetado e, enquanto minhas mãos tremulas exploravam seu nariz, o tamanho do animal ficou claro para mim.
Era gigantesco e devia pesar uma tonelada. Sua pele balançava debaixo das minhas mãos suadas e abriu sua boca levemente. Meus dedos envolveram-se em dentes do tamanho de facas de cozinha e percebo que aquela boca era absolutamente cavernosa.
O Porco guinchou de novo e ouvi seus cascos baterem contra o chão. Pareciam trovões de verão através de um campo aberto.
"Tire a venda, por favor," Implorei, minhas pernas se transformando em gelatina.
Danny tinha dado alguns passos para trás e ouvi a reverencia em sua voz, "Você não iria querer isso."
Dei um pulo enquanto O porco me farejava com seu focinho, aquele pedaço molhado de carne se espremendo contra minha face. Senti um arrepio, levantando minhas mãos e ocultando um grito de pavor.
"Alimente O Porco," Danny me instruiu, sua voz gélida. " Você fez sua escolha. Agora viva com ela. É a única chance que tens para voltar. Ou talvez O Porco não goste do seu gosto e te mande para o inferno. Só existe um jeito de descobrir."
Meus olhos se arregalaram por debaixo do pano vomitado, "Não...goste...do meu... gosto?!"
"Entre na boca dele."
Minha bexiga cedeu de novo e senti o mijo quente escorrer pelas minhas pernas, "Nã-não, vo-você não pode estar di-dizendo que..."
A voz de Danny ficou mais dura, "Entre na boca dele e não pare de entrar até que ele termine."
"Po-por fa-favor," Implorei, me virando em direção da voz de Danny, esticando os braços cegamente, "Por favor, deve haver ou-outro jeito... não me fa-faça fazer i-isso!" Eu era uma bagunça de ranho e lágrimas, minhas palavras trôpegas saindo de minha boca como de um bebê que aprende a falar.
Danny deu u passo a frente e me virou para eu ficar de frente para O Porco. "ENTRE! Você fez sua escolha! Tudo acabará em breve! É a sua ÚNICA chance!"
Pude sentir a respiração do Porco no meu rosto, seu focinho a centímetros de mim. O calor e o cheiro que exalava me dava vontade de vomitar de novo, mas me segurei. Aquilo era loucura, não podia estar acontecendo. Minha mente girava entre o medo e o caos. Devia haver outra forma. Eu não podia fazer aquilo, EU NÃO IRIA CONSEGUIR!
Repentinamente, as palavras da mulher me vieram à cabeça: As vezes sofrer pelo seu medo é melhor que sofrer por toda a eternidade. Seja corajoso.
Essa era minha única chance de voltar vivo para o mundo que conhecia. Eu havia cometido o pior erro possível quando me suicidara. Se eu podia voltar e mudar minha vida, eu não teria que viver o resto da minha eternidade ali ou no Inferno. Eu poderia mudar tudo, garantir um lugar melhor para minha alma. Algum lugar longe do Porco. Mas e se ele decidisse me mandar para o Inferno? Quanto sofrimento eu poderia aguentar?
Eu tinha que aproveitar minha chance.
"Por favor, Deus," Sussurrei, dando um passo para frente, "Se pode me ouvir, por favor, tenha misericórdia."
Minhas mãos tremulas encostaram no Porco e me agarrei ao seu pelo grosso. Senti ele abaixando a cabeça levemente e abrir a boca. Agora me aguardava, seu respirar quente e pesado queimando minhas narinas. Era isso. Não podia desistir mais.
Lentamente me agarrei ais dentes e me puxei para dentro de sua mandíbula. A cabeça dele estava inclinada, então imediatamente cai de barriga para baixo em uma inclinação de 45 graus. A língua molhada se remexia em baixo de mim e eu tremia tanto que mal conseguia respirar. As lágrimas se misturavam ao vômito da minha carapuça e pude sentir meu coração explodindo em batidas irregulares dentro da caixa torácica.
Devagar, agarrei um dente mais ao fundo para continuar me arrastando. Rangendo os dentes, me enfiei para dentro até os tornozelos. O Porco levantou a cabeça e fiquei totalmente em horizontal em sua língua.
Chorando de medo, procurei a minha frente e achei mais dentes. Me enfiei mais fundo em sua boca e senti meus pés passarem pelos lábios. Todo o meu corpo agora estava coberto de baba gosmenta e eu soluçava abertamente, procurando às cegas outros dentes.
E foi aí que O Porco começou a me mastigar.
Gritei em agonia enquanto meu corpo era comprimido entre dentes enormes. Ouvi minhas pernas estalarem e senti imediatamente o osso de minha perna esquerda ficando exposto. Me balancei violentamente enquanto meu corpo sofria espasmos pelo choque, um emaranhado de sangue e dor.
Sua língua mudou de lugar e senti uma mordida em meu ombro. Meus olhos quase saíram das órbitas e urrei de dor, minha clavícula era apenas destroços agora. Sem conseguir me controlar, vomitei muito, a dor era demais.
Não pare de entrar.
Gritando, com os olhos ficando vermelhos, usei meu braço bom para alcançar mais um dente. Quase quebrei minha própria mandíbula de tão forte que pressionava os dentes contra os outros, sangue escorrendo pelo canto da minha boca, enquanto meus dedos se envolviam em algo sólido.
O Porco mordeu de novo, sua língua girando meu corpo para que seus molares destruíssem meus joelhos. A dor fez tudo ficar escuro, mas meus urros forçaram meus olhos a ficarem bem abertos.
"JESUS, FAÇA ISSO TERMINAR!" Eu rugi, minha mão tremula procurando por mais dentes, "MEU DEUS, SÓ TERMINE LOGO!"
Pressionei tanto meus dentes que senti-os quebrar. Gritando, me enfiei mais para dentro da enorme boca.
Algo estava mudando, as paredes apertadas de sua garganta empurrando minha cabeça, foi aí que percebi que estava quase no fim.
"VAMOS FILHA DA PUTA! VAMOS!" Eu implorei, minhas cordas vocais no limite. Botei a mão para frente e me agarrei a um pedaço grosso de carne. Minha cabeça parecia que ia explodir e senti O Porco morder de novo.
Arfei, sangue explodindo de minha boca.
Ele havia perfurado meu estomago, transformando meus órgãos em massinha de modelar. A escuridão se completou em minha visão e eu já em conseguia gritar mais.
Com o último resquício de minhas forças, me empurrei uma última vez e senti meu corpo escorregar por sua garganta.
***
Escuridão.... Caindo... gritando. Eu estava gritando. Calor. Um calor tão intenso que achei que fosse derreter. Algo batendo. Como um martelo contra metal. Imagens e cores passaram tão rapidamente por mim que não conseguia distinguir as formas. Sangue saia de meus olhos.
Era como se eu estivesse caindo para sempre.
***
Meus olhos se abriram e eu estava caindo, o ar voltando para meus pulmões com uma maravilhosa onda de pureza. Minha cara bateu no chão de madeira e chorei quando senti meu nariz quebrando. Senti o gosto de sangue e vi estrelas.
Eu havia parado de cair.
Havia um círculo queimando em meu pescoço e eu sentia muita sede.
Eu estava deitado no chão.
Lentamente abri os olhos e a escuridão começou a se dissipar. Cores e formas se misturaram até minha visão focar.
Eu estava no galpão.
Coloquei a mão no pescoço e arfei quando vi a fonte da queimação. Era a corda. Eu havia me enforcado com ela, mas agora estava rompida.
O alívio rolou pelo meu corpo em maravilhosas ondas de agradecimento. Fiquei deitado no chão do galpão chorando, lágrimas que pingavam dos meus olhos no chão empoeirado. Meu corpo estremecia, mas estava intacto.
Eu havia sido poupado. Estava vivo novamente.
Do meu lugar no chão, me virei de barriga para cima, com a voz oscilante, "Obrigada, Deus. Ah, muito obrigada." Senti mais uma onda de choro incontrolável tomar conta de mim, "Prometo que não vou vier minha vida em vão. Prometo que farei ficar tudo certo. Eu concertarei tudo."
Não sei quanto tempo se passou até que eu levantasse. O tempo parecia irrelevante. Minha mente se recusava a voltar a ser como a de antes, todos os horrores que eu presenciara me mudaram para sempre.
Mas eu sabia, daquele momento em diante, que faria de tudo para ter a melhor vida possível. Viveria todos os dias como se fossem o último. Devotaria o meu tempo para ajudar aqueles que passam por fases obscuras como eu passara. Eu entraria em contato com o máximo de suicidas possível e tentaria salvá-los dos horrores do outro mundo.
Eu não quero que mais ninguém tenha que presenciar os pesadelos do suicídio.
Eu não quero que mais ninguém tenha que Alimentar O Porco.
Havia uma única lâmpada, balançando do teto por uma corda. Projetava uma sombra em movimento. Uma porta aberta está diante de mim, mas não conseguia ver nada além de uma parede de um corredor.
Tentei clarear minha mente, tentei lembrar como havia chegado ali. Fechei meus olhos com força e me forcei a não entrar em pânico. Diminuí a velocidade da minha respiração e foquei em meus pensamentos, tentando me forçar a lembrar o motivo para eu estar ali.
Eu não lembrava de nada.
Abri meus olhos e soltei o ar, minha garganta latejante ressecada. Podia ouvir sons ecoando pelas paredes de fora do corredor. Gritos, batidas, urros, todos muito distantes, mas isso não ajudou a acalmar meus nervos.
"Olá?!" Falei alto, as palavras parecendo romper minhas cordas vocais. Senti meu peito se contrair pela dor, mas pigarreei e gritei de novo.
"Tem alguém aí?! Olá?!"
O corredor escuro continuou silencioso exceto pelos ecos constantes. Calei a boca e tentei me desvencilhar de minhas amarras, mas a corda estava amarrada de um jeito impossivelmente apertado. Lutei contra minha imaginação que enchia minha mente de cenários horripilantes do que me esperava. Se eu conseguisse lembrar pelo menos de alguma coisinha!
De repente, passos surgiram da porta, em um padrão rápido de pés pequenos. Minhas esperanças se renovaram e voltei minha atenção para a porta, rezando que fosse ajuda.
Um menino correu para dentro da sala, usando um onesie vermelho, dos tipos que vem com meias acopladas. Sobre seu rosto estava uma máscara de plástico de Diabo. Os buracos dos olhos revelavam duas bolitas azuis enormes, olhos que me me olhavam com curiosidade. Meio atordoado, abri a boca para falar algo quando notei que algo estava estranho. Seus olhos eram enormes, impossivelmente redondos e esbugalhados. Fez com que um arrepio agoniante descesse por minha espinha, mas deixei de lado. A criança poderia me libertar.
"Ei!" Cochichei, urgentemente, "Ei menino, você pode me tirar daqui?!"
O garoto deu um passo para frente, virando a cabeça de lado, mas ainda em silêncio.
Sacudi meus braços amarrados contra a cadeira, "Me solte, por favor, eu não devia estar aqui, alguém cometeu algum erro!"
O garoto me observou por de trás da máscara e parou bem na minha frente. Se inclinou para frente, sussurrando, sua voz como seda molhada, "Você fez uma coisa ruim..."
Confuso, sacudi a cabeça, " Não! Não, isso é um erro! Eu não fiz nada!"
Os enormes olhos azuis se encheram de tristeza, "Ah, você fez sim, algo muito, muito ruim..."
Sacudi novamente a cabeça, mais violentamente, "Não! Me perdoe! Eu não lembro, por favor, me deixe sair dessa cadeira!"
Subitamente, antes que eu ou ele pudéssemos falar qualquer coisa, um homem veio correndo para a sala. Ele era gordo e vestia um macacão, seu rosto enrugado revirado em raiva acumulada. Em seus braços segurava uma espingarda de cano curto.
"Não fiz nada!" Chorei enquanto ele avançava em nossa direção, minha voz oscilando, "Eu não devia estar aqui!"
O gigante me ignorou e agarrou a criança e colocou-o contra a parede. O menino grunhiu quando suas costas bateram no concreto e seus olhos se levantaram para encontrar o homem grisalho.
Sem dizer uma palavra, o homem ergueu a espingarda, colocou contra a testa do garoto e estourou-lhe os miolos. Pedaços de cérebro respingaram nas paredes com um choque que me socou no estomago como uma soqueira de ferro. Havia um zumbido em meus ouvidos e o tempo parecia ter parado enquanto eu assistia o corpo sem cabeça sucumbir ao chão.
O ar voltou para os meus pulmões e o tempo pareceu voltar.
"JESUS CRISTO DO CÉU!" Gritei, lutando contra as amarras, meus olhos quase caindo do rosto de tanto pavor, "QUE PORRA É ESSA?!"
O homem ignorou meus gritos enquanto se curvava para recolher o corpo. Jogou o cadáver dilacerado sobre os ombros e saiu pela porta.
Logo, o corredor irrompeu em risadas maliciosas, um coro de vozes ululando em alegria. Fechei meus olhos, um som era ensurdecedor que preenchia meus poros com terror.
Minutos depois, a risada se dissipou e cautelosamente abri meus olhos, sem acreditar no que acabara de presenciar.
"Olá."
Dei um pulo quando percebi que outro homem estava diante de mim. Ele vestia uma camiseta branca de botão simples e uma calça jeans. Seus cabelos castanhos estavam cortados bem curtos e parecia ter uns trinta e poucos anos. Seus olhos verdes eram vazios e sem vida, seus lábios grossos repuxados para baixo nos cantos.
"O que está acontecendo? Onde estou?!" Chorei, o medo queimante se acumulando em meu estômago.
O homem cruzou os braços, "Então você é o novato, uh?" Balançou a cabeça, "O seu tipo me enoja."
Haviam perguntas na ponta da minha língua, mas ele balançou os braços, mandando eu ficar calado.
Ele passou a língua pelos dentes superiores, "Parece que você já viu alguns dos horrores que se abrigam nesse lugar, né? É, posso perceber pelo seu olhar. Está aterrorizado. Já viu algo, não é mesmo? O passado não parece tão ruim agora, né? Você está aqui só a cinco minutos e já está cagando nas calças."
"Onde estou?" Arfei, sem conseguir mais ficar calado, "O que vocês querem comigo?"
O homem segurou as mãos atrás das costas, "Aposto que você está querendo sair daqui, não quer? Aposto que você quer voltar para casa, para a sua família, tudo."
"Por favor," eu o interrompi, "Seja lá o que eu tenha feito para você... eu sinto muito, de verdade, mas eu não lembro!"
O homem revirou os olhos, "Você não fez nada para mim. Fez para você mesmo. Realmente não se lembra de nada?"
Balancei a cabeça negativamente e senti lágrimas nos meus olhos, medo líquido.
Ele me olhou com desprezo, "Você esperou que sua mulher saísse para o trabalho e então foi para o galpão e se enforcou. Você está morto."
A memória recente surgiu como um monstro de um pântano. Não importava o quanto eu quisesse negar... ele estava certo. Eu tinha me matado. O fato passou pelo meu cérebro como um trem-bala e me deixou pensativo.
"Meu nome é Danny, a propósito", falou, ignorando minha cara chocada, " E eu sou o número dois aqui. Eu tomo conta do processo de orientação. Quero que seja rápido porque estou de
saco cheiro de ter que repetir isso para vocês, suicidas patéticos. Você tem direito a uma pergunta antes de eu começar."
Ele me olhou de cima a baixo e eu tentei organizar meus pensamentos embaralhados em algo coeso. Era tudo aterrorizante. Por que eu havia me matado? Lutei contra o pânico e lentamente a névoa da confusão foi se dissipando. Eu havia acabado de perder meu emprego. Sim... esse foi o começo. Apertei meus olhos e forcei que outras memórias surgissem. Eu tinha acabado de perder meu emprego e estava prestes a perder a casa. Minha esposa... Tess... descobriu o que estava acontecendo e ia me deixar. Eu não tinha para onde fugir, não tinha outra opção. A demissão veio do nada e não tinha economias guardadas. Estava falido, logo me tornaria um sem teto, e minha esposa me odiava por isso. Mas havia outra coisa... sim... é, tinha mesmo. Ela estava me traindo. Eu havia lido algumas mensagens em seu celular enquanto ela dormia a noite e confirmei minhas suspeitas. Minha vida tinha se transformado em merda e não havia mais opções para mim. Humilhado e envergonhado, decidi que a morte era minha única saída.
"Ei, seu fodido, você tem uma pergunta ou não?" Danny falou, estalando os dedos na minha cara.
Voltei a realidade e perguntei a única coisa que importava.
"Aqui é o Inferno?"
Danny bufou, "Sempre a mesma pergunta." Ele começou a andar para lá e para cá na minha frente, "Não, aqui não é o inferno. Também não é o céu. Aqui é a Fazenda Negra. E não, não fui eu que nomeei assim. Aqui é onde Deus manda as almas que tiraram sua própria vida. Suicidas. Entenda, ele não sabe muito bem o que fazer com vocês e bem... nem o Satã sabe. Existem pessoas que são genuinamente boas que se matam. Parece cruel mandá-las para o Inferno por toda eternidade por um momento de fraqueza, sabe? Pessoalmente, só acho que Deus e Satã estavam cansados de discutir sobre isso. Então, bem, eles mandam vocês para cá, para a Fazenda Negra."
"Foi... foi Deus que criou esse lugar?" Perguntei, ficando cada vez mais confuso.
Danny cuspiu no chão, rindo, "Claro, em algum momento. Mas ele perdeu o controle quando colocou O Porco no controle."
"O que é O Porco?" Perguntei, mas em dúvida se queria mesmo saber a resposta.
Danny levantou uma mão, irritado, "Porra, posso terminar de falar?! Deus criou esse lugar, éons atrás, colocou O Porco no comando, e então esqueceu daqui por um tempo. Bem, quando virou as costas, O Porco decidiu usar seus novos poderes para tentar criar seu próprio mundinho. Essa bagunça que você está vendo à sua volta, é as sobras fraturadas deste experimento. A Fazenda Negra era bem legal antes, mas O Porco queria que as coisas fossem diferentes. Queria criar sua própria visão. Esses seres que você vê, esses monstros? São tentativas do Porco de criar vida funcional. Ao invés de replicar a terra de Deus, essas criações mutantes e horríveis são cheias de pecado e ódio. Estão desenfreados aqui, inabaláveis. Esse lugar é um caos. A Fazenda Negra é um circo de aberrações e monstros. E é a sua eternidade."
Medo fervilhou em meu estômago como óleo quente. Não. Não, isso não podia ser meu fim. Eu não acreditava em coisas daquele tipo. Não é real! Logo eu acordaria e percebera que foi apenas um pesadelo. Tem que ser!
Danny se pôs na minha frente e me deu tapinhas gentis no rosto, "Ei, ei! Não entre em histeria ainda. Não terminei aqui."
Levantei meus olhos marejados para encontrar com os dele.
Danny sorriu, "Você sempre pode alimentar O Porco."
Minha respiração parecia queimar meus pulmões, "O-o que você que-quer dizer com isso?"
Danny abriu os braços, ainda sorrindo, "É simples assim. Alimente O Porco. Se você alimentar, há uma chance dele te mandar de volta a vida."
"E o-o que acon-acontece se ele nã-não mandar?", gaguejei.
"Você será mandando para o Inferno. Então jogue a moeda, se tiver uma. Fique aqui conosco ou alimente O Porco. Se escolher ficar... te deixo ir para lá," apontou para a porta, "Mas te asseguro... o que te espera no fim do corredor... bem... vamos dizer que o inferno não é tão pior que isso."
Engoli seco, tentando dar o meu melhor para digerir tudo aquilo. Porque eu não tentaria alimentar O Porco? Seja lá o que isso signifique. Se ainda existia um resquício de esperança, eu o faria. Uma eternidade nesse lugar, na Fazenda Negra, no inferno ou... ou alimentar O Porco? Eu faria qualquer coisa para voltar. Esse pesadelo fazia meus problemas parecer nada.
Danny levantou a mão antes que eu pudesse falar, "Vou deixá-lo pensando um pouco. Volto mais tarde."
"Eu quero alimentar O Porco!" Gritei, sem querer passar mais nenhum segundo naquela sala. Pude ouvir uma mulher gritando no fim do corredor, seu choro aumentando enquanto algo carnudo batia contra ela. Meu respirar dava pontadas agudas em meus pulmões e minha garganta ardia. Danny notou o som e sorriu abertamente.
"Que som horroroso, né?" Falou suavemente enquanto a voz da mulher partia-se em agonia. Algo ainda estava batendo contra ela, o som da carne espancada fazendo minha imaginação se inundar com pesadelos.
"Por favor," arfei, " Só... só meu deixe alimentar O Porco. Não quero ficar mais nem um segundo aqui."
Danny se virou e foi andando, "Vou voltar mais tarde. Aproveite o seu tempo sozinho. Pense com carinho na sua situação. Pese suas opções. E lembre-se.... foi você que se pôs aqui."
E com isso, foi embora, me deixando no quarto mal iluminado.
As lágrimas rolavam por meu rosto.
A mulher continuou a gritar por horas.
***
Em algum ponto, eu caí em um semissono. A escuridão da sala parecia me pressionar e meus olhos se fecharam. Meu corpo doía e minha garganta era um círculo de fogo. A sede se instalara na minha garganta como um caco de vidro. Meus lábios pareciam papel amassado. Em minha cabeça, estouros de trovões. O quarto saia e entrava em foco e minha mente vagava pelos sons horripilantes que nunca cessavam.
Estava perdido em um nevoeiro, sem perceber que algo estava deslizando para dentro da sala até que senti uma fincada forte no meu dedão. Saí de meu torpor enquanto meu pé descalço pulsava em dor. Gritei e tentei me mexer, mas minhas amarras eram firmes.
O foco da minha visão voltou e pisquei em agonia enquanto sentia o sangue escorrer por entre meus dedos. Olhei para baixo para ver a fonte de minha dor e senti um grito se formando na minha garganta.
Olhando lá debaixo para mim, estava um homem sem braços. Ele se arrastava pelo chão como um verme, sua cabeça careca cheia de cicatrizes e sujeira. Suas pernas estavam presas bem juntas por arame farpado, forçando-o a se remexer pelo chão para se mover. Seus olhos não tinham pálpebras e estavam bem arregalados, duas bolas brancas avermelhadas que me fitavam famintas. Seus dentes tinham sido removidos e substituídos por grandes parafusos que saiam de suas gengivas como uma formação rochosa irregular.
Em volta de seu pescoço estava uma coleira de corrente, a qual segui com os olhos pelo chão até a porta aberta. A ponta da coleira estava sendo segurada por um homem alto e nu. Não tinha pelos e era flácido, coberto em cicatrizes similares de seu animalzinho de estimação. Uma sacola suja tinha sido colocada sobre sua cabeça e não pude ver muito de seu rosto, a não ser pelo olho vermelho que espiava pelo único furo da sacola.
Ele me olhou e agarrou seu pênis inchado, sua respiração pesada. Enquanto o homem sem braços se remexia até mim de novo, seu dono começou a se masturbar. Eu gritei quanto a boca cheia de parafusos me mordeu de novo, mas meus berros pareciam estimular ainda mais o homem nu.
"Sai de mim! Pare!" Gritei, horrorizado. Tentei chutar o homem, dando meu melhor para evitar os metais afiados. Dei com o calcanhar no topo da cabeça e ele gritou quando sua cabeça bateu contra o chão.
Um gemido de prazer escapou da boca do homem da sacola e me virei enquanto uma névoa preta pulverizava o chão. Houve um remexer de correntes e me virei novamente para vê-los indo embora, o homem sem braços sendo arrastado pelo pescoço. Olhei para onde o homem nu havia ejaculado e vi uma poça de formigas mortas. Vomitei em mim mesmo, uma mistura de bile e outros fluídos.
"EU QUERO SAIR DAQUI!" Gritei, vomito escorrendo pelo meu queixo, "EU NÃO PERTENÇO A ESSE LUGAR!"
Ouvi os dois homens irem embora pelo corredor, o som das correntes acompanhados pelo da carne sendo arrastada pelo concreto. Gritei de novo, mas sabia que ninguém ia me ajudar. Cuspi uma mistura de catarro com bile no chão, livrando minha boca do azedume. A força, tentei me acalmar. Não foi fácil.
Depois de um tempo, ouvi outra pessoa se aproximando. Eu estava em um período de calmaria miserável, minha mente era uma tela branca em um mar negro, mas o barulho me retirou do transe. Os músculos dos meus braços queimavam por estar amarrados por tanto tempo e eu o estimulava desesperadamente, tentando me preparar ao máximo para o próximo horror que entraria por aquela porta.
Os passos se aproximavam e então uma mulher entrou na sala. Ela parou na porta e olhou para mim. Ela não tinha um olho, era apenas um buraco cavernoso em seu crânio. Seu cabelo era bagunçado e selvagem, um emaranhado marrom como um ninho esquecido. Sua pele era pálida e suja, e estava vestida em farrapos. Não consegui descobrir sua idade, mas havia maturidade no olho que sobrara.
“Ainda pensando? ” Me perguntou, com sua voz quebradiça e amaldiçoada.
“Que? ”
Ele deu um passo em minha direção, “Você ainda está se decidindo se vai alimentar O Porco ou não? ”
Olhei cautelosamente para ela, “É.... estou. Quem é você? O que você quer?
“Uma vez estive na sua posição, ” disse, “tentando decidir meu destino. Mal podia acreditar que isso tudo estava acontecendo... que é isso que acontece depois que morremos. Não foi assim que eu aprendi... a religião não me avisou sobre esse lugar. ”
Tentei me soltar mais uma vez antes de perguntar, “Você também se matou? Você é uma pessoa como eu? Não é uma daquelas... criações? ”
Ela riu, “Quebra meu coração saber que você tem ainda que perguntar, ” ela tocou o buraco que um dia fora seu olho, “Mas entendo sua cautela. Sim, sou uma suicida. Estou aqui a muito, muito tempo. Mas essa foi uma escolha minha. Decidi que preferia ficar aqui. ”
Gesticulei com a cabeça em direção da porta, “O que tem lá fora? O que é esse lugar? ”
Ela suspirou longamente e se apoiou na porta, “Mal consigo descrever esse lugar. Não existe nada igual, nada que você já tenha vivenciado. Você sai do corredor e vai para... lá para.... e...” Ela engoliu a seco, “Você tem que ver para entender. ”
“É muito ruim? Porque essas pessoas mutantes estão machucando e matando uns aos outros? ” Perguntei.
Ela deixou a cabeça encostar na parede, “Levariam anos para você entender completamente esse lugar. Anos que você não tem. Agora você tem que fazer uma decisão. Fique ou Alimente O Porco. Eles dizem que o inferno é pior que aqui, mas não pode ser tão pior. Monstros e Suicidas rodeiam a Fazenda Negra... matando, estuprando, brutalizando... e então você acorda se perguntando quanto tempo consegue sobreviver até que alguém te mate. É um ciclo infinito. ”
“Então por que você ficou? ” Pressionei-a, “Por que não alimentou O Porco? Eu nem sei o que isso significa, mas faria qualquer coisa por uma chance de voltar. Não poso ficar aqui... simplesmente não posso! ”
Ela sorriu tristemente para mim, “Por que? Por que escolhi isso? É bem simples, na verdade. Sou covarde. Eu era covarde em vida e sou covarde em morte. Quando chegou a hora, escolhi ficar aqui. Eu não sabia o que me esperava lá fora. Se resumiu a uma simples escolha feita pelo meu próprio medo. ”
“O que é O Porco? O que ele faz com a gente? ” Perguntei.
Ela se virou para ir embora, “Creio que você mesmo terá que descobrir isso. Mas fique avisado: pense bem antes de decidir. As vezes sofrer pelo seu medo é melhor que sofrer por toda a eternidade. Seja corajoso. ”
“O que eu faço?!” Gritei, balançando minha cadeira enquanto ela atravessava a porta.
Ela parou e olhou uma última vez por cima do ombro. Seu olho me fulminou e sua voz foi apenas um sussurro, “Alimente O Porco. ”
E com isso ela se foi.
Fiquei sentado em silêncio novamente. Minha mente girava, desesperadamente avaliando minhas opções. Ainda não conseguia compreender a total situação que me encontrava. Era demais para mim. O outro lado da vida não devia ser assim. Não sabia o que esperava, mas com certeza não era esse pesadelo. Perguntas se debatiam na minha mente como ondas gélidas contra o casco de um navio naufragando. Como eu poderia fazer uma escolha se nem sabia o que isso me traria?
Esse lugar, a Fazenda Negra.... Eu não podia ficar ali. Mas e se eu fosse para o Inferno? O que aconteceria se eu não fosse mandado de volta? Seria mandado para o fogo. Minha existência seria condenada a miséria eterna. Entretanto aqui… aqui haviam pessoas como eu. Suicidas. Não eram somente monstros e assassinos mutilados. Talvez eu possa me encaixar com eles, bolar um plano para escaparmos juntos para um lugar melhor. Com certeza isso seria melhor que o inferno.
Não. Não seria assim que eu passaria o resto da minha eternidade. Me recuso a aceitar isso. Se houvesse esperança, por menor que fosse, não iria querer ficar me questionando como poderia ter sido. Não queria ser atormentado pela dúvida. Eu iria alimentar O Porco e aceitaria sua escolha sobre meu destino. Quando pesei as medidas, essa era minha única opção.
Eu iria alimentar O Porco.
“Ei! Olá?! Danny! ” Berrei, balançando em minha cadeira, “Já me decidi! Danny! ”
Depois de alguns segundos, ouvi passos ecoando pelo corredor em minha direção.
Danny passou pela porta, uma expressão irritada em seu rosto.
“Fiz minha escolha, ” Falei, “vou alimentar O Porco. ”
“Parece que você pensou muito desde que sai, ” Danny constatou ironicamente.
Lambi os lábios secos, “Você faria a mesma coisa se estivesse em meu lugar. ”
Danny se pôs atrás de mim, “Uma vez estive na mesma posição que você. E escolhi diferente. ” Arregalei meus olhos, mas logo Danny cobriu minha cabeça com um tecido fino, me cegando. Puxei bastante ar para os pulmões, mas minhas respiradas não pareciam conter oxigênio.
Senti Danny cortar minhas amarras e meu corpo se aliviou quando meus músculos duros foram libertados. Girei os ombros quando minhas mãos foram soltas e gemi com aquela sensação. Cocei as costas e depois me alonguei, meus ossos estralando.
“Não tire a venda e me acompanhe, ” Danny disse, me puxando.
Minhas pernas tremiam pelo peso inesperado, principalmente minhas coxas, por ter ficado tanto tempo na mesma posição. Estiquei as mãos cegamente à minha frente e encontrei os ombros de Danny. Descansei minhas mãos sobre ele enquanto Danny me guiava para fora.
Quando entramos no corredor, pude ouvir sons que antes não havia ouvido ainda. O barulho de correntes, um som longo de carne se partindo, algo vomitando... esses ruídos continuavam para sempre em meus ouvidos, pintando a escuridão de minha visão com cenas imaginárias de terror. Apertei o ombro de Danny com mais força, tropeçando a suas costas, meu coração disparado.
Ouvi algo se arrastando atrás de nós, mas Danny não parecia ter percebido. Ou se percebeu, nem ligou. O barulho de carne batendo contra a parede pareceu soar a centímetros de mim e de repente pude sentir um respirar quente na minha nuca, seguido de um estalar de língua contra os dentes. Minha respiração ficou ainda mais acelerada enquanto o medo me esmagava.
“ ‘Cê tá indo ‘limentar O Porco, né não? ” Algo sussurrou em meu ouvido. Senti algo ser pressionado contra a parte de trás da minha cabeça, mas só tentei não pensar no que aquilo poderá ser. Era molhado e gosmento e ouvi a coisa dar uma risadinha.
“ É um porquin’ faminto, ‘ntão tem cerrrteza dê dá a comida d’el agorrra, ” a coisa sussurrou de novo, a voz grossa se um jeito que nem sabia ser possível. Parecia uma série de grunhidos e gemidos postos juntos para formar palavras quebradas.
Para meu alívio, ouvi a coisa voltar de onde viera e continuei a seguir Danny. O mesmo continuou em silêncio enquanto andávamos, e logo pude sentir uma mudança no ar. O calor pesado mudou para uma temperatura mais fria, quase agradável, mas logo continuou a cair até que meu corpo começar a tremer violentamente contra o frio. Não conseguia ver nada, mas pude sentir uma brisa, como se estivéssemos na rua. Mas não havia ouvido Danny abrindo nenhuma porta, porém nada ali era normal. Era como se a realidade tivesse se partido e derretido.
Com os dentes batendo, fui arrebatado por um calor inesperado e arfei. Meus pés se desencontraram quando o terreno mudou e agora eu parecia andar sobre algo semelhante a metal morno. Meus ouvidos foram preenchidos por ruídos de fornos enormes e maquinas industriais. Eu não podia ver, mas senti que havia uma grande campo aberto mais a frente. Senti o cheiro de cinzas e senti um gosto sujo na minha boca, o suor já se formando ao longo da minha espinha.
De repente, bati contra Danny, que havia parado de súbito. Dei alguns passinhos para trás, rapidamente, e sussurrei desculpas. Pude ouvir movimentação a nossa frente, um tintilar de correntes e clique estranho no chão de metal. Outra coisa também... algo... roncando.
E então a sala se preencheu com um barulho ensurdecedor de um porco guinchado. Cobri meus ouvidos, minha cabeça girando por causa do som extremamente agudo. Rangi os dentes enquanto o som ecoava pelo chão de metal e ia se dissipando em uma série de guinchos e grunhidos.
Parecia ser absolutamente enorme.
"Trouxe mais um," Danny anunciou, um leve tom de respeito em sua voz. "Ele quer Alimentar O Porco."
Esperei, esperando ouvir uma resposta, o pano sobre meus olhos me deixando no escuro. Percebi que meus joelhos tremiam e que estava coberto de suor. Estava totalmente aterrorizado.
"Se é isso que desejas," Danny disse e senti sua mão sobre a minha. Aparentemente acontecera uma conversa silenciosa que eu não havia participado, então Danny me pegou pelo pulso e puxou-me para frente.
"Aproxime-se do Porco," me instruiu.
Meu corpo todo tremia e eu não conseguia me mover. Sem poder enxergar, ergui as mãos, tateando o nada, o calor e as cinzar me deixando enjoado. Senta como se fosse vomitar, meu estomago borbulhando. Eu não sabia onde estava nem que horrores estavam diante de mim. Me senti perdido e minúsculo, as minhas lágrimas ensopando a venda.
"Po-por favor," Implorei, "Me deixem ver o que está acontecendo."
Danny apareceu atrás de mim, me empurrando para a frente. Guiou minhas mãos para algo enquanto pisávamos no chão em uníssono. Mesmo com o pano em meu rosto, eu podia ver uma massa negra gigante erguendo-se como uma torre sobre mim. Era como um ponto preto em uma tela escura.
Enquanto ia para frente, fui açoitado por um cheiro horrível que me deu mais ânsia, então me virei. O aperto de Danny ficou mais forte e me forçou a continuar. Eu podia sentir algo bem perto à minha frente, uma massa de carne viva e enorme. O cheiro alcançou níveis absurdos de nojento e quase vomitei de novo. O ar quente estava sendo jogado em meu rosto, uma brisa aquecida que vinha em lufadas curtas.
Vomitei na carapuça, a fonte do cheiro fumegando no ar quente. Engasguei como a bile derramada sobre o tecido, a imersão momentaneamente cortando meu oxigênio. Danny deu um tapa em minhas mãos que queriam tirar a venda e eu levei alguns segundos para conseguir respirar novamente. Eu estava chorando abertamente agora, o medo e a miséria destruindo meu poder de vontade.
O pano molhado fedia enquanto eu puxava o ar. O ácido do meu próprio estomago cobria minha pele e eu só implorava que isso tudo terminasse logo.
E então algo guinchou bem na minha frente.
Senti minha bexiga ceder. Eu estava de frente para O Porco.
Ele era a fonte da escuridão que me assolava; uma criatura gorda, titânica, que preenchia meus sentidos a cada lufada de ar que jogava em meu rosto.
Danny levantou minha mão e me fez tocar o focinho do Porco. Recolhi meu braço imediatamente, mas Danny forçou minha mão de volta para lá. Seu pelo era duro e espetado e, enquanto minhas mãos tremulas exploravam seu nariz, o tamanho do animal ficou claro para mim.
Era gigantesco e devia pesar uma tonelada. Sua pele balançava debaixo das minhas mãos suadas e abriu sua boca levemente. Meus dedos envolveram-se em dentes do tamanho de facas de cozinha e percebo que aquela boca era absolutamente cavernosa.
O Porco guinchou de novo e ouvi seus cascos baterem contra o chão. Pareciam trovões de verão através de um campo aberto.
"Tire a venda, por favor," Implorei, minhas pernas se transformando em gelatina.
Danny tinha dado alguns passos para trás e ouvi a reverencia em sua voz, "Você não iria querer isso."
Dei um pulo enquanto O porco me farejava com seu focinho, aquele pedaço molhado de carne se espremendo contra minha face. Senti um arrepio, levantando minhas mãos e ocultando um grito de pavor.
"Alimente O Porco," Danny me instruiu, sua voz gélida. " Você fez sua escolha. Agora viva com ela. É a única chance que tens para voltar. Ou talvez O Porco não goste do seu gosto e te mande para o inferno. Só existe um jeito de descobrir."
Meus olhos se arregalaram por debaixo do pano vomitado, "Não...goste...do meu... gosto?!"
"Entre na boca dele."
Minha bexiga cedeu de novo e senti o mijo quente escorrer pelas minhas pernas, "Nã-não, vo-você não pode estar di-dizendo que..."
A voz de Danny ficou mais dura, "Entre na boca dele e não pare de entrar até que ele termine."
"Po-por fa-favor," Implorei, me virando em direção da voz de Danny, esticando os braços cegamente, "Por favor, deve haver ou-outro jeito... não me fa-faça fazer i-isso!" Eu era uma bagunça de ranho e lágrimas, minhas palavras trôpegas saindo de minha boca como de um bebê que aprende a falar.
Danny deu u passo a frente e me virou para eu ficar de frente para O Porco. "ENTRE! Você fez sua escolha! Tudo acabará em breve! É a sua ÚNICA chance!"
Pude sentir a respiração do Porco no meu rosto, seu focinho a centímetros de mim. O calor e o cheiro que exalava me dava vontade de vomitar de novo, mas me segurei. Aquilo era loucura, não podia estar acontecendo. Minha mente girava entre o medo e o caos. Devia haver outra forma. Eu não podia fazer aquilo, EU NÃO IRIA CONSEGUIR!
Repentinamente, as palavras da mulher me vieram à cabeça: As vezes sofrer pelo seu medo é melhor que sofrer por toda a eternidade. Seja corajoso.
Essa era minha única chance de voltar vivo para o mundo que conhecia. Eu havia cometido o pior erro possível quando me suicidara. Se eu podia voltar e mudar minha vida, eu não teria que viver o resto da minha eternidade ali ou no Inferno. Eu poderia mudar tudo, garantir um lugar melhor para minha alma. Algum lugar longe do Porco. Mas e se ele decidisse me mandar para o Inferno? Quanto sofrimento eu poderia aguentar?
Eu tinha que aproveitar minha chance.
"Por favor, Deus," Sussurrei, dando um passo para frente, "Se pode me ouvir, por favor, tenha misericórdia."
Minhas mãos tremulas encostaram no Porco e me agarrei ao seu pelo grosso. Senti ele abaixando a cabeça levemente e abrir a boca. Agora me aguardava, seu respirar quente e pesado queimando minhas narinas. Era isso. Não podia desistir mais.
Lentamente me agarrei ais dentes e me puxei para dentro de sua mandíbula. A cabeça dele estava inclinada, então imediatamente cai de barriga para baixo em uma inclinação de 45 graus. A língua molhada se remexia em baixo de mim e eu tremia tanto que mal conseguia respirar. As lágrimas se misturavam ao vômito da minha carapuça e pude sentir meu coração explodindo em batidas irregulares dentro da caixa torácica.
Devagar, agarrei um dente mais ao fundo para continuar me arrastando. Rangendo os dentes, me enfiei para dentro até os tornozelos. O Porco levantou a cabeça e fiquei totalmente em horizontal em sua língua.
Chorando de medo, procurei a minha frente e achei mais dentes. Me enfiei mais fundo em sua boca e senti meus pés passarem pelos lábios. Todo o meu corpo agora estava coberto de baba gosmenta e eu soluçava abertamente, procurando às cegas outros dentes.
E foi aí que O Porco começou a me mastigar.
Gritei em agonia enquanto meu corpo era comprimido entre dentes enormes. Ouvi minhas pernas estalarem e senti imediatamente o osso de minha perna esquerda ficando exposto. Me balancei violentamente enquanto meu corpo sofria espasmos pelo choque, um emaranhado de sangue e dor.
Sua língua mudou de lugar e senti uma mordida em meu ombro. Meus olhos quase saíram das órbitas e urrei de dor, minha clavícula era apenas destroços agora. Sem conseguir me controlar, vomitei muito, a dor era demais.
Não pare de entrar.
Gritando, com os olhos ficando vermelhos, usei meu braço bom para alcançar mais um dente. Quase quebrei minha própria mandíbula de tão forte que pressionava os dentes contra os outros, sangue escorrendo pelo canto da minha boca, enquanto meus dedos se envolviam em algo sólido.
O Porco mordeu de novo, sua língua girando meu corpo para que seus molares destruíssem meus joelhos. A dor fez tudo ficar escuro, mas meus urros forçaram meus olhos a ficarem bem abertos.
"JESUS, FAÇA ISSO TERMINAR!" Eu rugi, minha mão tremula procurando por mais dentes, "MEU DEUS, SÓ TERMINE LOGO!"
Pressionei tanto meus dentes que senti-os quebrar. Gritando, me enfiei mais para dentro da enorme boca.
Algo estava mudando, as paredes apertadas de sua garganta empurrando minha cabeça, foi aí que percebi que estava quase no fim.
"VAMOS FILHA DA PUTA! VAMOS!" Eu implorei, minhas cordas vocais no limite. Botei a mão para frente e me agarrei a um pedaço grosso de carne. Minha cabeça parecia que ia explodir e senti O Porco morder de novo.
Arfei, sangue explodindo de minha boca.
Ele havia perfurado meu estomago, transformando meus órgãos em massinha de modelar. A escuridão se completou em minha visão e eu já em conseguia gritar mais.
Com o último resquício de minhas forças, me empurrei uma última vez e senti meu corpo escorregar por sua garganta.
***
Escuridão.... Caindo... gritando. Eu estava gritando. Calor. Um calor tão intenso que achei que fosse derreter. Algo batendo. Como um martelo contra metal. Imagens e cores passaram tão rapidamente por mim que não conseguia distinguir as formas. Sangue saia de meus olhos.
Era como se eu estivesse caindo para sempre.
***
Meus olhos se abriram e eu estava caindo, o ar voltando para meus pulmões com uma maravilhosa onda de pureza. Minha cara bateu no chão de madeira e chorei quando senti meu nariz quebrando. Senti o gosto de sangue e vi estrelas.
Eu havia parado de cair.
Havia um círculo queimando em meu pescoço e eu sentia muita sede.
Eu estava deitado no chão.
Lentamente abri os olhos e a escuridão começou a se dissipar. Cores e formas se misturaram até minha visão focar.
Eu estava no galpão.
Coloquei a mão no pescoço e arfei quando vi a fonte da queimação. Era a corda. Eu havia me enforcado com ela, mas agora estava rompida.
O alívio rolou pelo meu corpo em maravilhosas ondas de agradecimento. Fiquei deitado no chão do galpão chorando, lágrimas que pingavam dos meus olhos no chão empoeirado. Meu corpo estremecia, mas estava intacto.
Eu havia sido poupado. Estava vivo novamente.
Do meu lugar no chão, me virei de barriga para cima, com a voz oscilante, "Obrigada, Deus. Ah, muito obrigada." Senti mais uma onda de choro incontrolável tomar conta de mim, "Prometo que não vou vier minha vida em vão. Prometo que farei ficar tudo certo. Eu concertarei tudo."
Não sei quanto tempo se passou até que eu levantasse. O tempo parecia irrelevante. Minha mente se recusava a voltar a ser como a de antes, todos os horrores que eu presenciara me mudaram para sempre.
Mas eu sabia, daquele momento em diante, que faria de tudo para ter a melhor vida possível. Viveria todos os dias como se fossem o último. Devotaria o meu tempo para ajudar aqueles que passam por fases obscuras como eu passara. Eu entraria em contato com o máximo de suicidas possível e tentaria salvá-los dos horrores do outro mundo.
Eu não quero que mais ninguém tenha que presenciar os pesadelos do suicídio.
Eu não quero que mais ninguém tenha que Alimentar O Porco.
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